segunda-feira, 24 de junho de 2013

SEMA venda os próprios olhos e libera licença da UHE Paiaguá, no rio Sangue (MT)

SEMA venda os próprios olhos e libera licença da UHE Paiaguá, no rio Sangue (MT)
Estudo de impacto ambiental ignorou exigências do termo de referência, teve trechos copiados da internet e incontáveis vícios técnicos. Mesmo assim, SEMA aceitou o trabalho, apesar de manifestação da FUNAI e de indígenas.
Andreia Fanzeres
“Quando você está com dor nos olhos, procura um médico oftalmologista ou vai se consultar com um proctologista?”. Pode parecer piada, mas foi mais ou menos isso que a Secretaria do Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA) acabou de fazer, ao dar seu voto de minerva favorável ao referendo da licença prévia da UHE Paiaguá, projetada para gerar 28MW a um custo de alagamento de 2.200 hectares e perda de 19km do rio do Sangue, na bacia do rio Juruena (MT), após uma votação apertada e empatada[1] no Conselho Estadual de Meio Ambiente de Mato Grosso (Consema).
O referendo da usina era apenas o primeiro ponto de uma pauta com oito itens para a reunião ordinária do dia 19 de junho de 2013, mas tomou 90% do tempo da reunião devido à enxurrada de erros técnicos e desleixos dos estudos apresentados pelo empreendedor, apontados por parte dos conselheiros. Um deles (e só para retomar a piada feita na abertura deste artigo) se referia ao fato de que todos os estudos de mastofauna, ictiofauna, herpetofauna e avifauna de um EIA – modalidade mais complexa e completa de estudos ambientais para empreendimentos poluidores – foram feitos, em tempo recorde, por um único profissional sem especialização.
De acordo com manifestação formal do Ministério Público Estadual (MPE) na reunião, essas pesquisas foram realizadas abrangendo apenas uma ida a campo no mês de junho para analisar o meio biótico durante a estação da seca e outra no mês de outubro para as observações durante o período de chuvas. Mas, como se sabe, o auge da época chuvosa se dá nos meses de dezembro, janeiro, fevereiro e março nesta região do Cerrado mato-grossense. Acontece que o empreendedor tinha pressa. Em novembro o estudo estava pronto. Foram apenas nove meses para reunir bibliografia, fazer pesquisa de campo para estudar o ciclo hidrológico, entrevistar pessoas, sistematizar informações e fechar o Estudo de Impacto Ambiental para a SEMA. No entanto, durante as audiências públicas, informou que realizou o estudo no período de um ano completo.
Esta é, por assim dizer, apenas uma gota num rio inteiro de absurdos aceitos pela SEMA, apesar das horas de apontamentos problemáticos feitos pela sociedade civil. O MPE, em uma exposição brilhante e minuciosa com base na avaliação de seus peritos, demonstrou que o empreendedor se baseou majoritariamente em dados secundários e cometeu erros primários quanto à metodologia de pesquisa, identificação de espécies, entre outras questões. Mas o que chamou mais atenção foi a descoberta de cópias, ipsis literis (puro plágio) de trechos inteiros do EIA retirados de uma tese de doutoramento facilmente encontrada na internet sem sequer uma menção ao autor.
É suficiente? Pois o parecer elaborado pela Ecotrópica, fundamentado na análise de cinco volumes de documentos da UHE Paiaguá cedidos pela SEMA, alertou que as audiências públicas continham vícios insanáveis, pois preteriram a população de esclarecimentos básicos sobre o projeto da usina, de acordo com as atas. As atas, aliás, escritas em português sofrível, continham em quase sua totalidade trechos que revelavam que as perguntas da população não foram respondidas, não foram devidamente registradas ou foram respondidas de forma incompleta, ou ainda, incorreta. Quando perguntado se os peixes iam conseguir subir o rio para procriar, o empreendedor explicou, por exemplo, que “os peixes se adaptarão à nova realidade, mais (sic) somente foi identificado 5 (cinco) espécies migratórias, e que o local onde está sendo construída a usina não afetará muito esta rota migratória”. Além disso tudo, não constava no processo nenhum registro da presença da população nas audiências públicas. Nas atas, apenas SEMA, Consema e empreendedores assinam. Mas, eis que durante a última reunião do Consema, após a leitura desse parecer, o representante da FAMATO sustentou em mãos uma lista de presença das audiências – documento que simplesmente não havia sido incluído nos autos desde setembro de 2012, quando as audiências em Campo Novo do Parecis e Nova Maringá foram realizadas. A misteriosa lista de presença “apareceu” justamente durante a reunião do Consema que daria o referendo à licença e foi anexada ao processo um dia antes. Que sorte, não é?
Outro fato propositalmente omitido pela SEMA e descoberto graças ao pedido de vistas do licenciamento, se refere à manifestação realizada pela FUNAI à SEMA e ao empreendedor 15 dias antes das audiências públicas, determinando a realização de Estudo de Componente Indígena (ECI) com consulta prévia às comunidades afetadas – ação que, pelos procedimentos internos da FUNAI, deve ser iniciada através de uma primeira comunicação do empreendedor com os indígenas. Pois logo a FUNAI, tão recorrentemente criticada pelo próprio Consema em suas reuniões ordinárias por supostamente não responder aos pedidos de manifestação encaminhados pelo setor de licenciamento da SEMA, deu sim orientações para a consulta aos povos Manoki e Paresi, potencialmente afetados se instalado o empreendimento. Ficou claro que a participação indígena foi tida como um problema para um licenciamento que poderia correr de modo tão mais célere sem sua incômoda presença. Melhor mesmo mantê-los invisíveis! Mas invisível mesmo ficou a manifestação da FUNAI no parecer técnico da SEMA sobre o qual os conselheiros deviam se basear para votar pelo referendo da licença da UHE Paiaguá ainda em maio de 2013, caso a Ecotrópica não tivesse tido o interesse de estudar melhor o assunto e adiar a derradeira decisão por um mês.
Diante do Consema, a SEMA induziu os conselheiros a interpretar que a FUNAI não tinha dado importância ao empreendimento e não havia se manifestado. Mas, mesmo de posse de comunicação por escrito e contato por telefone, o órgão licenciador do estado de Mato Grosso não moveu uma palha para exigir do empreendedor o cumprimento do rito determinado pela FUNAI. Este, segundo o órgão indigenista federal, era requisito para a emissão do Termo de Referência para o Estudo de Componente Indígena (ECI) – diga-se, parte integrante do EIA, sem o qual o estudo não devia ter sido considerado completo. Apenas seis meses depois do ofício da FUNAI, a SEMA enviou uma comunicação formal ao empreendedor – que desde setembro de 2012 sabia, mas discordava da necessidade de ECI alegando que pelo fato de o empreendimento localizar-se a mais de 10 km da Terra Indígena Manoki (situa-se a 25km, segundo ele mesmo aferiu), não haverá qualquer impacto ao território indígena. E ponto final.
Nem mesmo a presença de diversos indígenas no plenário da OAB, no dia 19 de junho de 2013, onde foi realizada a última reunião do Consema, constrangeu os empreendedores, a SEMA ou os conselheiros que votaram pela liberação da licença da UHE Paiaguá. Faz todo o sentido. Esta atitude gélida foi coerente com todo o processo de licenciamento que se desenrolou até então, ignorando explicitamente a existência dos indígenas – e, mais grave ainda, os impactos cumulativos e efeitos sinérgicos dos empreendimentos em operação e inventariados para a bacia do rio Juruena.
Representados pelo cacique geral do povo Manoki, Manoel Kanunxi, os índios disseram que não são “contra o progresso, mas desejam que os estudos para as usinas sejam feitos com qualidade, respeitando as instituições e as leis vigentes no país”. É o mínimo. O cacique fez uma mui pertinente contribuição ao Consema relatando os impactos subestimados de uma usina hidrelétrica no rio Cravari, a PCH Bocaiuva, que está a 30km da terra indígena e que reduziu drasticamente a vazão do rio e a presença de peixes. Essa experiência eles já têm e certamente poderia ser de imensa valia à SEMA se levasse este tipo de relato em consideração das próximas vezes que licenciasse hidrelétricas na mesma bacia do rio Juruena. Mas a SEMA preferiu vendar os próprios olhos.
Parte dos conselheiros, notadamente todos os representantes de organizações ambientalistas, com exceção do Instituto Ação Verde[2], sentiu-se impossibilitada de deliberar sobre uma usina como se ela fosse um empreendimento pontual. Sobre isso, o ISA fez uma simples, porém muito eficaz analogia com as tão conhecidas propagandas de novos empreendimentos imobiliários nas cidades, que são desenhados nos panfletos cercados de lindos jardins, natureza reinante e abundante como se não existissem outras intervenções urbanas no entorno. Esta é rigorosamente a situação que o estado de Mato Grosso coloca ao Consema, ao licenciar cada uma das usinas como se fossem entre si independentes em meio a outros 80 empreendimentos em operação ou inventariados pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) só para a bacia do rio Juruena.
Quem ainda acha que construir hidrelétricas deste jeito é a solução de geração de energia renovável para o Brasil precisa comparecer às reuniões do Consema de Mato Grosso, espaço em que a sociedade civil tem pelo menos alguma chance de participar de um debate mais amplo.



[1] Votaram a favor da licença: FAMATO, CREA, FIEMT, Secretaria do Estado de Transporte e Pavimentação Urbana (SEPTU), Procuradoria Geral do Estado (PGE), Instituto Ação Verde, Associação Mato-grossense de Municípios (AMM), Fecomércio e SEMA. Votaram contra a liberação da licença prévia ISA, IPAM, Ecotrópica, Instituto Centro de Vida (ICV), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Fetagri, Instituto Caracol, Instituto Floresta e Ministério Público Estadual (MPE). Como empatou, a SEMA se alinhou ao primeiro grupo.

[2] O Instituto Ação Verde é presidido pelo deputado estadual Carlos Avallone Junior, que reconheceu em maio de 2013 no próprio Consema ser proprietário de cinco usinas hidrelétricas no rio Juruena. Ele sustentou na ocasião que este fato não configura qualquer problema ético com sua atuação no Consema, onde representa uma organização ambientalista da sociedade civil. De acordo com o site do Instituto Ação Verde na internet, a ONG foi criada para se contrapor ao posicionamento de “ONGs internacionais” e tem entre suas entidades formadoras as instituições: Federação das Indústrias no Estado de Mato Grosso (Fiemt), Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso (Famato), Associação de Produtores de Soja de Mato Grosso (Aprosoja), Associação de Criadores de Mato Grosso (Acrimat), Sindicato das Indústrias Sucroalcooleiras de Mato Grosso (Sindálcool), Centro das Indústrias Produtoras e Exportadoras de Madeira (Cipem), Sindicato da Construção, Geração, Transmissão e Distribuição de Energia Elétrica e Gás no Estado de Mato Grosso (Sincremat) e Associação Mato-grossense de Produtores de Algodão (Ampa).

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