sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Para que um novo código mineral?

IHU
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Para que um novo código mineral?

“É assim que a ampliação da produção de alumínio – e de vários outros projetos de beneficiamento mineral que acompanham a expansão acelerada da mineração na Amazônia – guarda forte relação com a construção prevista para a região de 20 novas usinas hidrelétricas de grande e médio porte até 2020. A entrada da Vale, em abril de 2011, no consórcio responsável pela construção de Belo Monte aponta qual deve ser um dos destinos prioritários da energia a ser gerada pela usina. E mostra que, não por acaso, as novas fronteiras de produção de energia e de exploração mineral avançam de mãos dadas sobre os mesmos espaços”.

A análise é de Juliana Malerba em artigo que apresenta o livro por ela organizado Novo marco da mineração no Brasil: para quê, para quem? Rio de Janeiro: FASE, 2012.
O livro – que além do texto que segue contém artigos de Bruno Milanez, da Universidade Federal de Juiz de Fora, e Luiz Jardim Wanderley, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – está disponível em formato eletrônico no sítio daFASE.

Eis o artigo.

O Estado do Pará iniciou os anos 2000 produzindo quase 4 bilhões de reais em minérios. Em dezembro de 2011, o valor dessa produção atingiu praticamente a marca dos 25 bilhões de reais, destinados majoritariamente ao mercado externo. Esse salto, alcançado com apoio de um maciço investimento público e privado, aponta que há algo de novo no front.

Na última década na Amazônia surgiram inúmeras frentes de extrativismo mineral. Em Carajás, a ampliação da produção de minério de ferro e manganês se deu ao lado da abertura de novas minas de cobre e níquel. Isso permitiu à Vale, que em 2000 não produzia um grama de cobre, triplicar a produção brasileira passando de um patamar médio de 30 mil toneladas/ano para mais de 100 mil toneladas/ano. Também possibilitou à empresa investir R$ 760 milhões em uma usina de beneficiamento de níquel em Ourilândia do Norte, onde explora depósitos desse minério que se estendem até os municípios de São Felix do Xingu e Parauapebas.

No oeste do Pará, Juruti acaba de entrar para o rol dos municípios mineradores onde a Alcoa começou a explorar bauxita, matéria prima para a produção de alumínio, ampliando também a exploração desse minério no estado, que já conta com minas em Oriximiná e Paragominas. Em Barcarena, a 80km de Belém, as fábricas de alumina e alumínio passaram por um processo de ampliação da produção. Os processos de beneficiamento mineral são intensivos no consumo de energia. Para produzir 432 mil toneladas de alumínio a Albrás, instalada em Barcarena, consumiu a mesma quantidade de energia elétrica das duas maiores cidades da Amazônia, Belém e Manaus. A empresa responde por 1,5% do consumo de eletricidade do Brasil com seus quase 200 milhões de habitantes. A energia de Tucuruí, que entrou em operação na década de 1980, ainda hoje é consumida prioritariamente pela Albrás e pela Alumar, em São Luiz, no Maranhão. E ambas pagam tarifas subsidiadas, diga-se de passagem.

É assim que a ampliação da produção de alumínio – e de vários outros projetos de beneficiamento mineral que acompanham a expansão acelerada da mineração na Amazônia – guarda forte relação com a construção prevista para a região de 20 novas usinas hidrelétricas de grande e médio porte até 2020. A entrada da Vale, em abril de 2011, no consórcio responsável pela construção de Belo Monte aponta qual deve ser um dos destinos prioritários da energia a ser gerada pela usina. E mostra que, não por acaso, as novas fronteiras de produção de energia e de exploração mineral avançam de mãos dadas sobre os mesmos espaços.

Como boa parte dos bens minerais explorados no país tem como destino o mercado externo, a duplicação da estrada de ferro Carajás e a expansão dos portos em São Luiz entram na conta do boom mineral[1]. Um fenômeno que também impulsiona a ampliação em alguns milhares de hectares de áreas de plantio de eucaliptos e também o desmatamento ilegal destinados à produção de carvão utilizado como insumo no processo de produção de ferro gusa pelas 14 siderúrgicas já instaladas ao longo da estrada de ferro Carajás[2].

Se há 10 anos a indústria extrativa tinha uma participação muita menos expressiva no PIB brasileiro, representando apenas 1,6%, em 2000, contra 4,1%, em 2011, outra mudança importante na história econômica e política do país refere-se à reformulação do papel do Estado brasileiro.

É fato que após a onda de políticas neoliberais que assolaram o continente no final do último século, governos progressistas reformularam as estratégias de desenvolvimento em seus países comprometidos com a redução dos índices de pobreza, com a ampliação do acesso a direitos sociais e com a tentativa de reposicionar os países e a região no cenário global buscando maior autonomia política em relação às potências hegemônicas.

Também no Brasil, o Estado passa a reforçar seu papel como indutor do desenvolvimento capitalista através de um forte investimento em alguns setores econômicos para os quais destina as prioridades de financiamento, subsídios e infraestrutura logística (transporte, energia). O resultado tem sido um processo de concentração de capitais nacionais (mas também transnacionais) que possibilitou a algumas grandes empresas brasileiras se fortalecerem no cenário global e se reproduzirem aceleradamente no território nacional. Ao mesmo tempo, constroem-se novas regulações que buscam garantir maior controle do Estado sobre o excedente produzido por esses setores econômicos com vistas a viabilizar investimentos tanto em políticas de inclusão social e de diminuição das desigualdades quanto na reprodução dessa estratégia de indução do desenvolvimento econômico.

Tudo indica que a proposta de um novo marco regulatório para as atividades minerais no país em discussão no Executivo – e com previsão de ser apresentado ao Congresso nos próximos meses – tem no seu bojo a marca dessa nova conjuntura. De um lado, visa ampliar e intensificar a exploração mineral do país, respondendo ao atual momento de aumento de preços dos minérios associado, sobretudo, ao crescimento da demanda a nível global, à redução das melhores reservas e à possibilidade de escassez de alguns minérios a médio prazo. De outro, pretende aumentar a participação do Estado nos resultados econômicos gerados pela mineração. E como instrumento estratégico para a política de desenvolvimento do governo, apresenta as mesmas contradições.

A mais central delas talvez esteja no fato de que um maior controle sobre os recursos naturais pelo Estado não tem sido capaz de alterar o peso das heranças patrimonialistas e excludentes sobre o controle dos recursos naturais e a distribuição desigual dos impactos negativos da exploração desses recursos sobre populações historicamente vulnerabilizadas. Tampouco tem conseguido neutralizar as pressões internas e externas no campo econômico resultantes da inserção do país na economia global.

Em se tratando do novo marco regulatório, isso significa que ao criar mecanismos[3] que assegurem o aumento no ritmo de exploração, o Estado, ainda que em nome da necessidade de gerar divisas que viabilizem políticas de redução da pobreza e desigualdade social, impulsiona um processo de despossessão, muitas vezes autoritária e violenta, dos grupos sociais nos territórios.

A história da mineração no Brasil e a experiência em curso de expansão dessa atividade na América do Sul demonstram que a prioridade, em nome de um suposto interesse público, que é dada pelos governos às atividades minerais em relação a outros usos econômicos e culturais dos territórios longe de ser construída através de processos democráticos é antes implementada, muitas vezes, por meio da violência e da criminalização[4]. E tende a provocar a perda das bases de reprodução socioeconômica dos grupos locais dado o caráter de controle e reorganização do espaço que a dinâmica mineral impõe aos territórios[5].

O resultado é a expressão do que alguns autores têm chamado de “o paradoxo latino-americano”: em nome da superação da desigualdade e da pobreza governos progressistas impulsionam a expansão de atividades extrativas – notadamente o petróleo e os minérios – cujos custos sociais e ambientais têm gerado exclusão e desigualdade.

Por outro lado, estão ausentes na proposta em debate no Executivo a criação de mecanismos de regulação: i) que garantam a internalização dos custos socioambientais nos projetos, ii) que possibilitem definir mais claramente áreas e situações onde os prejuízos econômicos e ambientais gerados pela mineração inviabilizariam sua implementação, iii) que evitem uma completa dependência da economia local `a atividade mineradora cuja vida é relativamente curta ou iv) que definam a escala e ritmo em que as atividades mineradoras devem ser instaladas e operadas com vistas a garantir o uso racional dos bens minerais e a precaução frente aos potenciais impactos socioambientais da atividade.

Outro elemento desse paradoxo estabelecido a partir do fomento a essa lógica extrativa é que ela não é capaz de desmontar a posição primário-exportadora que o país ocupa no mercado global, com todos os problemas associado à opção por um modelo de desenvolvimento ancorado na especialização na exportação de recursos naturais (desenvolvimento de estruturas econômicas pouco diversificadas, tendência a deteriorização dos termos das trocas com redução progressiva dos preços das commodities, a perda de biodiversidade e impactos socioambientais expressivos que incluem inviabilização de estratégias produtivas existentes, etc.) [6].

A despeito da antiga demanda dos críticos da inserção subordinada das economias latino americanas e do compromisso que os governos frequentemente anunciam (e que a proposta de novo código reafirma, ao menos do ponto de vista discursivo) com o estímulo à verticalização e agregação de valor ao setor, as perspectivas de sua consolidação a curto e médio prazo não são claras.

Isso porque a estrutura atual do setor mineral global está organizada de forma que a “fase quente” dos processos metalúrgicos (responsável pela transformação dos minerais em produtos semiacabados tais como placas, lingotes e blocos), mais intensiva em energia e recursos[7], esteja concentrada nos países periféricos, enquanto a “fase fria”, menos poluente, menos intensiva em energia e com produtos de maior valor agregado, se mantém nos países centrais. Provavelmente, o mercado internacional tenderá a orientar a verticalização e a agregação de valor, estimulando a produção dos semiacabados em detrimento da produção dos acabados[8]. A isso se somam medidas nacionais de estímulo à exportação de produtos primários que visam gerar superávit primário a exemplo da Lei Complementar nº 87, de 10/09/1996 (“Lei Kandir”) que isenta produtos primários e industrializados semi-elaborados do recolhimento do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviço) nas exportações[9].

Os textos de autoria dos pesquisadores Bruno Milanez, da Universidade Federal de Juiz de Fora, e Luiz Jardim Wanderley, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, presentes nesta publicação apresentam elementos que corroboram com essas análises e aprofundam questões relacionadas aos riscos de que o novo marco regulatório pouco avance no sentido de romper com as contradições apontadas.

Um dos alertas feito por eles refere-se ao fato do projeto de reformulação do código mineral não estar sendo discutido com a sociedade, embora em vários momentos o ministro Edison Lobão tenha publicizado que a proposta estava sendo construída em diálogo com o setor produtivo. Conceber um novo marco regulatório unicamente a partir das contribuições e demandas do setor mineral aponta a fragilidade democrática sobre a qual se pretende reordenar as regras e o funcionamento de um setor tão estratégico para a economia e a política de um país.

Por outro lado, os questionamentos presentes nos textos nos inspiram a disputar o debate com os instrumentos que adquirimos ao longo das últimas décadas por meio de processos de lutas sociais e de articulação de novas forças políticas.

Na América andina, intelectuais e movimentos sociais vem construindo um debate em torno da transição rumo a um modelo pós-extrativista e defendem uma estratégia gradual de transição. Essa estratégia estabelece a internalização progressiva dos custos socioambientais das atividades extrativas, a redução da dependência exportadora de recursos vinculando mais diretamente às atividades a cadeias econômicas nacionais e regionais, a definição de áreas livres de exploração mineral em função da biodiversidade e da manutenção de dinâmicas socioprodutivas locais e, sobretudo, a construção de um debate público sobre os fins que orientam a produção mineral.

No Brasil, diante da conjuntura atual de desregulamentação e flexibilização da normativa ambiental e de questionamentos por setores conservadores sobre direitos adquiridos[10], o processo de construção de um novo marco regulatório para a mineração deve possibilitar à sociedade discutir as desigualdades que perpassam também as disputas pela apropriação do meio ambiente e a desigual proteção aos riscos ambientais a que estão submetidos determinados grupos sociais, historicamente vulnerabilizados.

Isso significa, por exemplo, que frente à expansão da fronteira mineral rumo a Amazônia, o novo marco regulatório deveria ser um instrumento de reafirmação e fortalecimento dos direitos coletivos e territoriais reconhecidos – mas ainda não totalmente implementados – pelas legislações de proteção dos povos indígenas e populações tradicionais.

O processo de elaboração de um novo marco regulatório também pode ser uma oportunidade valiosa para construir instrumentos que resignifiquem o sentido da renda das atividades extrativas. Os recursos advindos da atividade mineral capturados pelo Estado têm de deixar de serem vistos como uma compensação pelos impactos negativos causados pelas atividades (que, a rigor, devem ser internalizados nos custos da própria atividade e compensados de maneira justa por ações desenvolvidas pelas próprias empresas). Dado o caráter exaurível das atividades minerais, os recursos advindos da renda extrativa devem estar vinculados à construção de uma economia pós-extrativa, sem, no entanto, representar a única estratégia para construção dessa transição, sob o risco de que em nome da superação do atual modelo extrativo se justifique e se aprofunde a intensificação da exploração mineral atualmente em curso no país.

Antes, a discussão sobre o novo marco regulatório para a mineração no Brasil deve ser uma oportunidade para a construção de um debate público e democrático sobre os rumos do desenvolvimento do país. Infelizmente o início dessa construção não tem sido marcado por essa possibilidade. Mas, acreditando que ainda há chances de reverter esse processo, nos colocamos na disputa de ideias e propostas, abertos para o debate.
Notas:

[1] Essa ampliação permitirá, por exemplo, o aumento da produção de minério de ferro dos atuais 109 milhões de toneladas/ano para 239 milhões de toneladas em 2016.
[2] Conf. Instituto Observatório Social. O Aço da devastação. Junho de 2011. Edição especial.

[3] Uma das principais mudanças propostas no novo código mineral diz respeito à criação de garantias para a realização de atividades mineradoras ou penalidades àqueles que retiverem direitos de lavra sem explorar suas áreas. Além de procedimentos para fiscalização das atividades de mineração para garantir que as empresas cumpram as atividades previstas nos contratos. Da mesma forma, está sendo discutida a criação de Áreas de Relevante Interesse Mineral(ARIM) onde, a depender dos tipos e características dos minérios encontrados, vigorariam procedimentos especiais capazes de garantir a exploração de minerais considerados pelo Estado como estratégicos. Conf. Milanez, 2012, nesta publicação.

[4] No Peru, os conflitos envolvendo atividades minerais e petrolíferas representam mais de 80% de todos os conflitos sociais registrados. Na Colômbia, cerca de 70% dos deslocamentos forçados ocorridos entre 1995 e 2002 ocorreram em áreas de exploração mineral. Conf. Acosta, A. Extractivismo y neoextractivismo; dos caras da misma maldición. Mas allá del desarollo. Fundacion Rosa Luxemburg, 2011.

[5] A instalação das minas de bauxita da Mineração Rio do Norte e de ferro da Vale ocasionaram a perdas de áreas destinadas ao uso agrícola e à coleta de produtos da floresta, em Oriximiná, onde vivem os quilombolas do Trombetas e os moradores do lago Sapucuá. Também os moradores do lago Juruti Velho, em Juruti e os índios Xikrin de Carajás sofreram perdas semelhantes decorrentes da instalação dessas minas. Conf. Jardim, 2012, nesta publicação.

[6] Vale citar ainda a vulnerabilidade da estratégia primário exportadora em um mundo onde a crise financeira tem sido cíclica. Em 2008, o próprio setor mineral brasileiro apresentou perdas decorrentes da crise global.

[7] Segundo dados do IPEA (2010), para cada tonelada de aço bruto produzido no Brasil, consomem-se 1.514 kg de minério de ferro; 358 kg de coque de carvão mineral e 13,4 mil litros de água. Além disso, essa produção gera 367 kg de agregados siderúrgicos e 10 mil litros de efluentes líquidos. Conf. Milanez, 2012, nesta publicação.

[8] Nos anos 1980, o Programa Grande Carajás prometia dinamização da economia local a partir da instalação de indústrias responsáveis pelo primeiro estágio do processo siderúrgico (a produção de ferro gusa) que atrairia o surgimento do restante da cadeia. Trinta anos depois, somente as guseiras estão instaladas na região, cuja produção é exportada em quase toda sua totalidade.

[9] Informe do DNPM sobre a economia mineral do estado do Pará revela que alguns minérios, apesar do crescimento na produção, apresentaram um decréscimo acentuado nas vendas internas. É o caso do ouro, cobre e mais notadamente do minério de ferro que teve um decréscimo da ordem de 65% entre 2010 e 2011 nas vendas internas, tendo a sua comercialização predominantemente voltada para a exportação. Conf. DNPM. Informe mineral. Economia mineral do Estado do Pará 2011. www.dnpm.gov.br acessado em 01/09/2012.

[10] O novo Código Florestal é o exemplo que ganhou maior notoriedade na opinião pública nacional, entretanto, ele não é único. No que tange ao licenciamento ambiental, desde o lançamento do PAC, em 2007, decretos, leis e portarias têm diminuído os prazos de concessão de licenças, alterado a capacidade fiscalização do IBAMA e reduzido os limites de unidades de conservação para permitir a construção de hidrelétricas. Mais recentemente a Advocacia Geral da União baixou o Decreto 303 que impõe restrições aos direitos constitucionais dos povos indígenas vedando a ampliação das terras indígenas já demarcadas. Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) proposta pelo partido Democratas(DEM), a ser votada pelo STF, questiona a constitucionalidade do Decreto 4887, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.

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