terça-feira, 11 de setembro de 2012

O velho e bom feminismo?

REVISTA CULT
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O velho e bom feminismo?

Protestos políticos de mulheres com seios à mostra anunciam que ainda há muito a conquistar
Manifestações feministas ensinam que as desigualdades não podem ser tomadas isoladamente; cenas de A Chinesa (1967), manifesto cinematográfico de Jean-Luc Godard
ALINNE  BONETTI
Elas foram guilhotinadas, conquistaram o direito ao voto, “queimaram” sutiãs, protestaram  contra as ditaduras e o capitalismo, desafiaram as religiões, passaram a decidir sobre o momento de serem mães, tomaram as universidades, criticaram a ciência, inventaram novas teorias e campos de estudos, invadiram o mercado de trabalho, criaram leis para se protegerem contra a violência e passaram a ocupar altos cargos políticos em importantes países ao redor do mundo. São inúmeras e inegáveis as conquistas e, se as mulheres já conquistaram tanto, há quem possa argumentar que o feminismo perdeu a sua razão de existência.
As marcantes presenças tanto de mulheres quanto de bandeiras feministas em recentes mobilizações políticas ao redor do mundo parecem anunciar que ainda não se conquistou o suficiente. Os protestos de jovens mulheres em forma de invasões a eventos públicos com seios à mostra, como faz o grupo ucraniano Femen, e de marchas pelas ruas das grandes cidades do mundo, vestidas apenas com lingeries, autonominadas como Marchas das Vadias, revelam que o feminismo continua vicejante. Mas será que continua o mesmo? Que mensagem essas manifestações trazem sobre o feminismo no mundo contemporâneo, ao utilizarem o próprio corpo como instrumento de resistência às mais distintas formas atuais de opressão, tais como racismo, lesbo-homofobia, o capitalismo, os regimes políticos ditatoriais?
Simploriamente tomado como uma indesejável guerra entre os sexos, o ser feminista ainda carrega uma conotação negativa, supostamente antifeminina. Caudatário das revoluções do século 18, o feminismo pode ser caracterizado genericamente como uma ideologia política típica da modernidade, da qual decorre uma produção teórico-intelectual e uma prática política, ambas intensas e plurais, que vem se transformando ao longo dos anos. Compartilha, portanto, do ideário e do conjunto de valores iluministas como a centralidade do sujeito indiviso e universal, a racionalidade, a igualdade e a liberdade, que até hoje compõem o léxico da política no mundo ocidental. Importa destacar que a essa concepção de sujeito iluminista corresponde uma identidade, compreendida como coerente, fixa e que é central na constituição do indivíduo moderno.
Em diálogo com esse conjunto de valores, o feminismo – entendido como uma ideologia política – constituiu-se historicamente a partir da formulação de uma identidade coletiva e de um projeto de vida em sociedade particulares. Eles baseiam-se na suposição de que todas as mulheres, universalmente, compartilham experiências de opressão e interesses de transformação desta condição, oriundos do fato de terem nascido com as marcas corporais de fêmeas da espécie humana. Logo, o projeto político feminista implicaria na resistência a um poder que domina e oprime as mulheres, emancipando-as. Criar-se-ia, assim, uma nova identidade coletiva para elas, marcada pela liberdade e pela igualdade, o que redundaria em outra forma de vida em sociedade. Foi assim que o feminismo investiu a categoria social mulher – tomada a partir de uma concepção identitária baseada no aparato biológico, no corpo feminino – de um estatuto particular, tornando-a seu maior patrimônio político.
O feminismo, no entanto, não é um bloco homogêneo. Há, ao longo de sua história, relevantes marcos, diferentes perspectivas sobre seu sujeito e seu projeto políticos e formas variadas de expressão e mobilização, o que constitui a riqueza dessa ideologia a ponto de se reivindicar referi-la no plural. Mais ou menos consensualmente, entende-se que o feminismo teve seu primeiro grande marco mobilizatório em torno da igualdade entre homens e mulheres. Ao enfatizar direitos e possibilidades iguais para ambos os sexos, a tradição igualitarista  caracterizou predominantemente o feminismo desde seu surgimento, que tem como uma referência a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” de Olympe de Gouges, escritora e revolucionária francesa guilhotinada em 1793, até as mobilizações femininas pela igualdade entre homens e mulheres pelo direito ao voto, do início do século 20, movimento conhecido como Sufragismo.
Após esse período, há um arrefecimento das mobilizações feministas, que recrudescem  somente nos anos 1970. Instigado pelos escritos existencialistas de Simone de Beauvoir sobre a condição da mulher, o novo feminismo institui um outro paradigma contestatório em torno da identidade feminina. Tal identidade é compreendida como una, imutável, coerente e marcada pela opressão, que se origina na particularidade do e se manifesta no corpo das mulheres. São corolários desse paradigma a compreensão de que as mulheres compartilham de uma realidade separada e radicalmente distinta da realidade masculina, de que o poder emana dos homens sobre as mulheres, de que os sistemas de dominação são transculturais e trans-históricos e estão imiscuídos aos modos de produção e de reprodução sociais. É também por meio desse paradigma identitário que o feminismo promove uma contundente problematização e consequente politização de arenas da vida social nunca antes questionado como a família, a sexualidade, a vida doméstica em todas as suas dimensões e, sobretudo, a subjetividade. Contudo, não tardam as críticas à forma como a identidade feminina é compreendida e defendida neste novo feminismo.
É dos movimentos pós-coloniais, de mulheres negras, lésbicas e de juventude que surgem as críticas à perspectiva predominante do novo feminismo. Essas outras experiências de exclusão anunciam que o novo feminismo pretensamente universal é, antes, situado. Ele é ocidental, branco, heterossexual, adulto, letrado e de classe média. Essas perspectivas encerram, também, uma crítica sobre universalização do quadro ideológico do poder e das relações de poder do pensamento ocidental. No bojo dessa crítica é que a noção de identidade feminina, que alimenta esse paradigma, passa a ser desconstruída. Sua contestação passa pelo  questionamento da sua universalidade, da sua fixidez e, sobretudo, da própria noção de corpo como base biológica e material incontestável da identidade.
O sujeito da política, a identidade e o corpo passam a ser relativizados, tornando-se  contextuais e contingentes. Propugna-se a complexificação dessa identidade a partir da incorporação e da articulação de marcadores sociais da diferença como gênero – a grande categoria política e analítica que deu o pontapé inicial ao processo de questionamento da fixidez identitária – raça, sexualidade, classe, religião, nacionalidade, entre outros. Como conseqüência desse conjunto de desafios críticos ao novo feminismo, tem-se a pluralização das suas possibilidades mobilizatórias e, também, das perspectivas feministas na  contemporaneidade.
É neste contexto que podem ser compreendidas as recentes manifestações das feministas ucranianas do Femen que, com seus seios à mostra, protestam, ao mesmo tempo, contra o abuso dos corpos das mulheres pela prostituição e pelo turismo sexual e contra as ditaduras remanescentes na Europa oriental. É também nessa nova chave compreensiva que a Marcha das Vadias questiona a persistente banalização das violações sexuais das quais as mulheres são vítimas e também o racismo, a homofobia, a desigualdade de acesso ao poder e de salários entre homens e mulheres e o modo capitalista de vida que promove o consumo como signo de cidadania e destrói o meio ambiente. Tais manifestações feministas nos ensinam que as matrizes de desigualdades não podem ser tomadas isoladamente; antes elas são intrinsecamente associadas.
E o que dizer, então, do feminismo como ideologia política da contemporaneidade? Ao que parece, ele vive em um paradoxo. Os dois exemplos de protestos feministas acima mencionados colocam em evidência, novamente, o corpo feminino. Anunciam que, mesmo em tempos em que ser mulher não é mais exclusivamente definido pela materialidade da biologia, o corpo feminino ainda é onde se manifesta tanto a opressão quanto a resistência a ela. Essas mulheres insistem em nos fazer ver que é necessário lembrar que o seu corpo é o seu território, sobre o qual nem o Estado e nem as Igrejas devem ter ingerência. Mostram, com isso, que há muito que transformar no conjunto de valores relativos ao imaginário sexual que estão disponíveis na nossa cultura e que são predominantemente compartilhados, as nossas convenções de gênero.
Ao mesmo tempo, no entanto, elas sugerem que há algo na própria constituição da ideologia política feminista e nas suas formas de resistência que também necessita ser transformado, dada a persistência das mesmas violações às mulheres e ao feminino. Talvez o desafio contemporâneo para o novo feminismo seja a possibilidade de se constituir prescindindo do seu grande patrimônio político, as mulheres, como o seu sujeito político. Estamos, pois, à espera de uma nova inflexão para o feminismo contemporâneo.
Alinne Bonetti,
antropóloga, professora do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade (BEGD), do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismos (PPGNEIM) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), Universidade Federal da Bahia (UFBA)

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