segunda-feira, 17 de setembro de 2012

No Maranhão, uma decisão judicial lembra como é difícil ser pobre

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No Maranhão, uma decisão judicial lembra como é difícil ser pobre 

Um trabalhador havia conseguido, em primeira instância, uma decisão na Justiça do Trabalho para que o fazendeiro e juiz Marcelo Testa Baldochi lhe pagasse R$ 7 mil, como indenização por danos morais. Ele havia sido resgatado por um grupo de fiscalização do governo federalde condições análogas às de escravo no interior do Maranhão em 2007. O caso Baldochi ficou famoso e rodou o país por razões óbvias, afinal de contas não é todo dia que se vê um juiz envolvido em uma situação assim.
A Primeira Turma do Tribunal Regional do Trabalho no Maranhão votou contra a indenização e o acórdão saiu no último dia 13 de setembro (processo número 0143200-45.2009.5.16.0013).
Sem entrar no mérito das confusões que os desembargadores fizeram sobre o que é trabalho escravo contemporâneo – o que fica evidente para quem lê o acórdão – gostaria de destacar um tema específico que vai além do crime em questão. Ou seja, a visão que alguns de nossos magistrados do Trabalho têm do que sejam direitos dos trabalhadores.
Segue um trecho retirado da decisão do Tribunal (em itálico):
“Em relação às condições de moradia, ditas aviltantes, sem banheiro e tratamento de água e esgoto adequadas, mister que façamos algumas reflexões. Vejamos. É patente que a maior parte da população mundial, mormente dos países periféricos, como é o caso do Brasil, vivencia uma realidade social de privação, seja como morador das periferias nas grandes cidades, seja como habitante da zona rural.
Não raro, tomamos conhecimento de que, em pleno século XXI, grandes cidades brasileiras não dispõem de condições ideais de saneamento básico, tais como tratamento de água e esgoto, realidade essa que não muito diferente da que se espera encontrar em locais que estão incrustados no meio do mato, distantes mais de 32 km do povoado mais próximo.
Sem irmos longe, faço o seguinte questionamento: quantos de nós confiamos no tratamento de água recebido pelas empresas de abastecimento, que servem nossas residências e nossos locais de trabalho? Se formos pensar sob esse prisma, todos nós estamos submetidos a situações degradantes e passíveis de reparação por dano moral.
Todo trabalho desenvolvido, seja como operário da construção civil, seja como catador de lixo, seja como gari, seja como trabalhador rural, lidando com o cultivo da terra, na agricultura ou mesmo na pecuária, cada trabalhador cumpre um papel relevante para o desenvolvimento econômico da sociedade, se submetendo às condições próprias do exercício da função desempenhada, de acordo com a realidade e o contexto em que se desenvolve.
Não se pode querer aplicar à realidade de um trabalhador rural, do nordeste brasileiro, um ambiente de trabalho diverso do que fora apresentado na situação em análise. É surreal pretender aplicar ao local, onde são realizadas as frentes de trabalho rural, estrutura e ambiente de trabalho próprios dos grandes centros urbanos, que atendem às necessidades das atividades ali desenvolvidas.
Contudo, cabe anotar que, não pretendo fazer apologia das condições retratadas nos presentes autos, nem tampouco entendo que tais condições sejam as ideais. Apenas busco uma reflexão acerca das diferenças existentes entre as condições ditas ideais e aquelas que verificamos na realidade, no nosso dia-a-dia, ou que, pelo menos, faz parte do cotidiano daqueles que vivem e trabalham na zona rural.
A prova maior de que as condições usufruídas pelo trabalhador nas dependências da reclamada não são diferentes ou alheias ao seu cotidiano, é o fato de que o mesmo não vislumbrou qualquer óbice em retornar ao mesmo local, para exercício da mesma atividade e sob as mesmas condições, em menos de 2 meses após seu regresso à cidade de origem.
Atribuir à reclamada a obrigação de indenizar o reclamante pelas condições retratadas, seria o mesmo que admitir que todos nós seríamos obrigados a indenizar uns aos outros, pelas situações que são próprias, inerentes ao contexto social, cultural e econômico em que vivemos.”
Grosso modo, é o seguinte: a vida do cabra era uma titica antes de ir pra fazenda. Lá, as condições não eram ideais. Depois, quando foi embora, acabou por voltar para a mesma situação. Portanto, que culpa o fazendeiro tem?
Seria piada, se não fosse um tapa do Estado na cara de uma pessoa que já tinha sido despida de seus direitos e de sua dignidade.
Eu posso viver dentro do pântano, comendo estrume e bebendo xixi de cabra. Na hora em que passo a trabalhar para alguém, alojado em sua propriedade, ele tem a obrigação de garantir condições dignas para mim. E mesmo que um trabalhador concorde com condições precárias ou indignas, mesmo que peça para trabalhar apenas por comida, o empregador não pode sujeitá-lo a elas. De acordo com tratados e convenções internacionais do qual o Brasil é signatário, o consentimento sobre a própria exploração é irrelevante. A dignidade do indivíduo é um bem que deve ser tutelado pela coletividade e pelo Estado.
Ninguém ignora que o trabalho no campo e na cidade possuem suas peculiaridades, mas a lei garante que o primeiro e o segundo contam com os mesmos direitos. Perante a Constituição, não existe cidadãos de primeira e segunda classes. A prática, é claro, tem sido diferente por casos como esse. 
E se há propriedades rurais que conseguem operar dentro da lei, oferecendo água potável e banheiros aos seus empregados, mesmo com frentes de trabalho distantes da sede da fazenda, por que outras não? Pois fica inviável economicamente? Que raios de empreendimentos são esses que só existem por conta da superexploração de trabalhadores?
Senti uma certa vergonha por conta da comparação descabida com as “empresas de abastecimento”. Afinal de contas, estamos falando de pessoas que estavam sob condições precárias de acesso à água. Se formos pensar sob esse prisma, não precisamos de Justiça do Trabalho. Mas os desembargadores são livres para expressarem sua opinião da maneira que quiserem. E nós de torcer por uma revisão da decisão em uma instância superior. 
Por fim, quem define as “condições próprias do exercício da função desempenhada”, citadas na decisão? Porque elas não são dadas pelo Sobrenatural, não surgem de geração espontânea, mas têm sido impostas de cima para baixo, de patrões para empregados ao longo de décadas, batizadas com os nomes esdrúxulos de “tradição”, “cultura” e “hábito”. Perguntem aos trabalhadores se eles concordam com isso. Que tipo tacanha de contrato entre capital e trabalho é esse? 
“Sempre foi assim” porque alguém quis que fosse. Alguém economicamente e politicamente mais forte e que contou – e, pelo visto, continua contando – com interpretações favoráveis da lei por parte de setores do Estado. 

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