sexta-feira, 3 de agosto de 2012

A burocracia e as violências invisíveis

IBASE
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A burocracia e as violências invisíveis

Renzo Taddei
Colunista do Canal Ibase
matéria de capa da revista Time da semana passada chama a atenção para dados impressionantes sobre o suicídio entre militares norte-americanos. Desde 2004, o número de militares americanos que se suicidaram é maior do que os que foram mortos em combate no Afeganistão. Em média, um soldado americano na ativa se suicida por dia. Dentre os veteranos, um suicídio ocorre a cada 80 minutos. Entre 2004 e 2008, a taxa de suicídio entre militares cresceu 80%; só em 2012, esse crescimento já é de 18%. O suicídio ultrapassou os acidentes automobilísticos como primeira causa de morte de militares fora de situação de combate.
Foto: Matthew C. Moeller (Flickr)
O exército americano naturalmente busca, preocupado, identificar as causas do problema – até o momento sem sucesso. O problema está longe de ser óbvio, no entanto. Um terço dos suicidas nunca foi ao Afeganistão ou ao Iraque. 43% só foram convocados uma vez. Apenas 8,5% dos suicidas foram convocados três vezes ou mais. E, em sua maioria, são casados. Ou seja, nem todos os suicídios estão relacionados com traumas de campos de batalha.
Como é de se esperar, a burocracia militar busca um diagnóstico burocrático, para que a solução seja burocrática – de modo que não seja necessário cavar muito fundo na questão. O exército americano não tem psiquiatras e profissionais de serviço social suficientes. Muitos soldados se suicidam na longa espera por uma consulta psiquiátrica; outros, após terem sido receitados soníferos e oficialmente diagnosticados como “não sendo um perigo para si ou para os demais”. A cultura militar estigmatiza demonstrações de fraqueza, de modo que muitos evitam procurar ajuda a tempo. Viúvas acusam o exército de negligência; oficiais militares dizem que os soldados se suicidam devido a problemas conjugais.
Enquanto eu refletia sobre o assunto, chegou até mim a indicação de um livro chamadoDays of Destruction, Days of Revolt, do jornalista americano Chris Edges. O livro descreve a situação de algumas das cidades mais pobres dos Estados Unidos e chega à conclusão de que a pobreza de tais cidades não tem ligação com a ideia de subdesenvolvimento, mas sim ao que se poderia chamar de contra-desenvolvimento: são cidades que foram destruídas pela exploração capitalista.
Uma dessas cidades, Camden, no estado de Nova Jersey, é velha conhecida: durante meu doutorado nos Estados Unidos, trabalhei como fotógrafo para complementar minha renda, e estive em Camden várias vezes. Sempre me impressionaram os sinais explícitos de decadência do lugar: gente vivendo em prédios em ruínas; equipamentos públicos em decomposição; tráfico de droga à luz do dia. Agora descubro que se trata nada menos da cidade com menor renda per capita do país.
Chris Edges chama tais cidades de zonas de sacrifício do capitalismo. Ou seja, para que a exploração capitalista possa ocorrer sem impedimentos, o capital se move de um lugar para outro assim que os recursos ou as oportunidades se esgotam, deixando para trás cidades fantasmas, desemprego e depressão. A lógica desse padrão de exploração é bem conhecida desde Marx, pelo menos. O que Chris Edges faz é, com a ajuda do artista gráfico e também jornalista Joe Sacco, dar nova visibilidade a um problema que a burocracia oficial e a mídia fazem questão de não enxergar.
Que relação há entre os suicídios militares e a pobreza urbana dos Estados Unidos? Na verdade, me dei conta de que há uma analogia fundamental entre os dois casos: em ambos há a conjugação do fato de que para que o sistema funcione – e estamos falando de sistemas diferentes para cada caso – alguém tem que ser sacrificado; e esse sacrifício e suas vítimas sacrificiais devem permanecer invisíveis para a maioria da população. O esforço dos Estados Unidos para manter sua hegemonia militar produz de forma sistemática a morte de uma imensa quantidade de gente, dentre americanos e seus supostos inimigos. E, para que a lucratividade se mantenha alta, florestas, cidades e empregos são destruídos, também de forma sistemática. Uma das expressões usadas nas ciências sociais para descrever esse estado de coisas é violência estrutural.
A invisibilidade dessas coisas é imprescindível – só assim pessoas bem intencionadas e de boa fé podem participar do sistema perverso, sem enxergar sua perversidade. Por isso, por exemplo, o governo Bush (pai) articulou com a imprensa americana um pacto para que não fossem publicadas fotos de caixões de soldados mortos em combate na primeira Guerra do Golfo. O pacto esteve em vigor por quase vinte anos, até que foi desfeito por Obama em 2009.
Mas a forma mais comum, e eficaz, de produzir as formas de violência estrutural que reproduzem desigualdades de forma invisível é a burocracia. E isso se dá, como nos lembra David Graeber, em razão do fato de que é função da burocracia ignorar as minúcias da vida cotidiana e reduzir tudo a fórmulas mecânicas e estatísticas. Isso nos permite focar nossas energias em um número menor de variáveis, e assim realizar coisas grandiosas e incríveis – para o bem e para o mal. O papel que a burocracia tem na produção da invisibilidade que mantém violências estruturais em funcionamento pode ser exemplificado através do uso de estatísticas em políticas públicas, por exemplo. Um dos programas oficiais de apoio à população rural do Nordeste mais importantes da atualidade, o Garantia Safra – em que pequenos agricultores adquirem um seguro e são indenizados em caso de perda de safra -, sistematicamente exclui agricultores em função de miopia burocrática. Para que os agricultores de um município recebam a indenização, as regras do programa exigem que haja 50% de perda da safra de todo o município. No entanto, basta ver a dimensão e os contornos dos municípios brasileiros para rapidamente concluir que não há relação necessária entre os limites municipais e os fenômenos meteorológicos. Há municípios que, de tão extensos, apresentam variações climáticas dramáticas dentro de suas fronteiras. Nesses casos, é comum que muitos agricultores com grandes perdas não recebam qualquer indenização, se outras regiões do município tiverem perdas menores. Por que é que o município tem que ser tomado como unidade de referência nesse caso? Porque há um aparato burocrático municipal para gerir o programa, e não há níveis burocráticos oficiais em escala menor. Ou seja, o sistema é burro mesmo que ninguém o seja, e quem sofre as consequências são os agricultores.
De forma correlata, índices nacionais ou estaduais de desemprego, crescimento do PIB e do PIB per capita, são unidades de referência centrais das políticas públicas atuais, ainda que sejam médias que não levem em consideração as situações extremas onde efetivamente existe vulnerabilidade socioeconômica. É como se o ditado que diz que “a corda sempre se parte no lado mais fraco” fosse sistematicamente ignorado. A vulnerabilidade de qualquer sistema – uma máquina, por exemplo – é definida pelo seu componente mais frágil. Qualquer engenheiro sabe disso; na verdade, a ideia é tão óbvia que qualquer um sabe disso. É aí que entra a burocracia:  não importa muito o que as pessoas sabem ou não, elas não serão capazes de identificar como a burocracia produz inconsistências e violência estrutural, a menos que sejam diretamente afetadas. Dessa forma, cidades como Camden ficam sistematicamente fora do radar, camufladas por estatísticas de âmbito estadual ou nacional.
Isso tudo está relacionado a outra notícia veiculada nos jornais na semana passada: a posição do Brasil nos debates na ONU sobre a regulação do comércio mundial de armas. Apesar das evidências de que as armas fabricadas no Brasil foram e continuam sendo vendidas a governos com histórico de violação dos direitos humanos, o Brasil se colocou frontalmente contra a regulação e criação de mecanismos que deem transparência a esse mercado. A justificativa, como não poderia deixar de ser, é burocrática: a disseminação de informações sobre capacidade bélica “poderia expor os recursos e a capacidade dos países [...] de sustentar um conflito prolongado”. Colocar isso como argumento que tem precedência sobre a necessidade de proteger os direitos humanos é um escândalo. Por trás dessa desculpa esfarrapada, está a intenção de proteger a lucrativa indústria bélica brasileira. O que faz a história toda mais indigesta é o fato da Dilma ter sido vítima de tortura, durante o período em que o Brasil era dirigido pela burocracia militar. Como pode a mesma presidente que criou a Comissão da Verdade ser conivente com uma indústria e um mercado manchados de sangue?
Esse episódio mostra que, em termos éticos, há menos diferença entre Estados Unidos e Brasil do que os brasileiros gostam de acreditar. Para proteger o capitalismo – já não mais num campo de luta ideológica, como à época da guerra fria, mas na forma de interesses privados reais e específicos de empresas norte-americanas -, os Estados Unidos passam a ser um perigo não apenas para nações vulneráveis não-alinhadas, mas a si mesmo, como revela a epidemia de suicídios entre militares. Da mesma forma, e pelas mesmas razões – ou seja, na caminhada rumo à sua consolidação como poder imperialista – o Brasil se preocupa com seus mortos políticos, e estrategicamente finge não ver que, para a engorda do seu PIB e para a prosperidade de sua indústria bélica, uma imensa quantidade de vidas – na África, no Oriente Média, no sul do Pará e nos morros cariocas -  é sacrificada.
Renzo Taddei é professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É doutor em antropologia pela Universidade de Columbia, em Nova York. Dedica-se aos estudos sociais da ciência e tecnologia.

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