segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Pedro Casaldáliga - carta pastoral 6/8

Fonte:
http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/uma-igreja-na-amazonia/umaigrejaparte6.htm


Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social

(parte VI/8)



PEÕES

Um sério problema com que se defrontam as empresas Agropecuárias da região é o da mão-de-obra. Não conseguem entre os elementos locais esta mão-de-obra desejada que, além de ser escassa, já conhece os métodos de tratamento das companhias.

Vêem-se obrigadas então a procurá-la fora. E os lugares preferidos são o sul de Goiás, inclusive Goiânia, e o Nordeste. O método de recrutamento é através de promessas de bons salários, excelentes condições de trabalho, assistência médica gratuita, transporte gratuito, etc. Quem faz este trabalho, são, geralmente, empreiteiros, muitos deles pistoleiros, jagunços e aventureiros que recebem determinada importância para executar tal tarefa.

Os peões, aliciados fora, são transportados em avião, barco ou pau-de-arara para o local da derrubada. Ao chegar, a maioria recebe a comunicação de que terão que pagar os gastos de viagem, inclusive transporte. E já de início têm que fazer suprimento de alimentos e ferramentas nos armazéns da fazenda, a preços muito elevados. (Na Tamakavy S/A, por exemplo, em junho de 1971, um quilo de cebola custava Cr$- 8,00; um saco de arroz de 3.ª qualidade, Cr$- 75,00 a 78,00; um machado, Cr$- 16,00; foice, Cr$- 15,00). (Documentação, nº IV, 4. C).

Para os peões não há moradia. Logo que chegam, são levados para a mata, para a zona da derrubada onde tem que construir, como puderem, um barracão para se agasalhar, tendo que providenciar sua própria alimentação. As condições de trabalho são as mais precárias possíveis. Na Codeara, por exemplo, muitos tiveram que trabalhar com água pela cintura. A incidência de malária é espantosa, sobretudo em algumas companhias, de onde poucos saem sem tê-las contraído. Codeara, Brasil Novo, Tamakavy são bem conhecidas quanto a isso. Os medicamentos quase sempre são insuficiente e em muitas, pagos, inclusive amostra grátis.

Por tudo isto, os peões trabalham meses, e ao contrair malária ou outra qualquer doença, todo seu saldo é devorado, ficando mesmo endividados com a fazenda. (Documentação, nº IV, 1; IV, 4. D; IV, 4. A). O atendimento é deficiente, sendo tomadas providências quando o caso já é extremo, não havendo possibilidade de cura. São levados então para as vilas onde também não há recursos, agravando assim a situação das próprias vilas. Aí morrerão anônimos. (Documentação, nº IV, 1; IV, 6).

Esse trabalho pesado, e nestas condições, é executado por gente de toda idade, inclusive menores (13, 14, 15, 17 anos). Quando a Polícia Federal no ano passado interveio na Codeara, constatou este fato. (Documentação, nº IV, 1).

Não há com os peões nenhum contrato de trabalho. Tudo fica em simples combinação oral com o empreiteiro. Acontece mesmo que o empreiteiro foge, deixando na mão todos os seus subordinados. (Documentação, nº IV, 3). Os pagamentos são efetuados ao bel-prazer das empresas. Muitas vezes usa-se o esquema de não pagar, ou pagar só com vales, ou só no fim de todo o trabalho realizado, para poder reter os peões, já que a mão-de-obra é escassa. É o que acontece atualmente na BORDON S/A - AGROPECUÁRIA DA AMAZÔNIA. Até o presente, o que consta, bem poucos dos peões recebem qualquer dinheiro, mesmo após terem concluído as tarefas a eles designadas. Recebem unicamente vales. Alguns, necessitando de dinheiro com premência para atenderem às necessidades da família que está fora, chegam até a trocar seus vales de Cr$-1.000,00 por Cr$- 500,00, em moeda, com seus colegas.(Documentação, nºV, 1; IV, 4. A. C. D. F. G.).

Outros muitos, doente, sentindo-se sem forças e temendo morrer naquelas condições, não conseguindo receber o que de direito, fogem para sobreviver. (Documentação nº IV, 4. B). Outros ainda fogem por se verem cada vez mais endividados. E nesta fugas são barrados por pistoleiros pagos para tanto. (Documentação, nº VI, 1). Na Bordon tem um "tal de Abraão" que " não faz nada", segundo dizem os peões, mas que anda armado o dia todo com uma CBC 22, automática. Foi visto, com esta arma, no Patrimônio de Serra Nova, para intimidar também os posseiros. Gaba-se de ter dois processos por homicídio e vários por tentativa.

Além disso a própria polícia local é utilizada com freqüência para manter ainda mais escravizados os peões (Documentação, nº IV, 1; IV, 5). Na Tamakavy, por exemplo, alguns peões chefes de "time" (turma), ao irem reclamar com o Capitão de Polícia de Barra do Garças, por mau atendimento, receberam dele uma carta para o Gerente, Geraldo, em que denunciava os peões. O Gerente, ao tomar conhecimento do que os peões reclamaram, solicitou a presença da polícia de S. Félix que, armada de metralhadoras, foi à fazenda e prendeu a Pedro Pereira dos Anjos, líder dos peões. (Documentação nº à Delegacia dar parte de crime, de espancamento, de morte, de salário não pago, etc., encontra o delegado sem querer ouvir a questão para não se meter em complicações com as companhias, os fazendeiros (Documentação, nº IV, 4. F).

O peão, fechado na mata por muitos meses, nessas condições de tensão desumana, quando vai ou é levado à cidade (nota 8), gasta, muitas vezes, tudo o que recebeu, em bebedeiras, prostituição e é facilmente roubado. (Essa é a oportunidade dos comerciantes inescrupulosos!) Vários chegam a S. Félix depois de 4 ou 5 meses de trabalho na mata, com mais de Cr$- 1.000,00 e, ao saírem, dois ou três dias depois, necessitam vender até alguns pertences para poder comer.

Esta é, em linhas gerais, a situação do peão. Quando alguma denúncia chega a mobilizar a opinião pública, os proprietários lavam-se as mão dizendo desconhecer o que se passa, colocando toda a responsabilidade sobre gerentes e empreiteiros. Codeara é exemplo disto. (cf. O Globo, 16/2/71 - Documentação nº IV, 3). E depois de a Polícia Federal ter desvendado uma série de crimes e barbaridades cometidas contra os trabalhadores, os donos não sofrem a mínima punição. Chegam mesmo a publicar: "Foi o primeiro projeto da SUDAM a contar com atividade regularizadora do Ministério do Trabalho" e que "foi investigada exaustivamente a possibilidade de trabalho escravo, ou de qualquer manifestação de abuso do poder econômico, nada tendo sido encontrado de irregular ou lamentável". (O popular - Goiânia, 8/7/71). Não disseram, porém, que esta intervenção do Ministério do Trabalho deveu-se a fatos verdadeiramente comprovados, do que agora é negado após a intervenção da Polícia Federal.

Aliás a intervenção federal só se faz presente quando a opinião pública é mobilizada. Não há nenhuma fiscalização com relação ao trabalho nas fazendas. Significativa é a carta escrita por um peão da fazenda Suiá-Missu ao Ministro do Trabalho, carta que seria levada em mãos ao Ministro do Trabalho, carta que seria levada em mãos ao Ministério, mas que nunca o foi já que o portador (peão) não tinha condições para deslocar-se até Brasília. (Documentação, nº IV, 8).

Outro problema que se prevê para um futuro próximo é o desemprego. (Problema para o qual "Visão" já chamava a atenção em sua edição de 18/7/70). Há necessidade de mão-de-obra abundante para as derrubadas e formação das pastagens. Quando estas estiverem prontas, o gado tomará conta de tudo. Os peões só terão uma recomendação, talvez não muito grata, do passado...

O peão, depois de suportar este tipo de tratamento, perde sua personalidade. Vive, sem sentir que está em condições infra-humana. Peão já ganhou conotação depreciativa por parte do povo das vilas, como sendo pessoa sem direito e sem responsabilidade. Os fazendeiros mesmo consideram o peão como raça inferior, com o único dever de servir a eles, os "desbravadores". Nada fazem pela promoção humana dessa gente. O peão não tem direito à terra, à cultura, à assistência, à família, a nada. É incrível a resignação, a apatia e paciência destes homens, que só se explica pelo fatalismo sedimentado através de gerações de brasileiros sem pátria, dessas massas deserdadas de semi-escravos que se sucederam desde as Capitanias Hereditárias.
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Nota:

8- Após o término de uma derrubada, as companhias lotam caminhões de peões que são "despejados" nas vilas.


~ Gregory Colbert

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